Qual futuro desejamos para a arqueologia no Brasil?

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INTRODUÇÃO

Na esteira dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais acabou por se configurar no Brasil, o “arqueobusiness”, hoje modalidade francamente hegemônica no que concerne à práxis e disseminação da informação arqueológica. Nunca se escavou tanto (bem ou mal), nunca se publicou tanto (com ou sem substância), nunca se divulgou tanto nas mais diversas plataformas como nessa última década. Em adição, inúmeros são os campos de investigação que encontraram solo fértil para lançarem suas raízes. Falamos do debate em torno da Arqueologia Pública, da Arqueologia Forense, da Arqueologia subaquática, do turismo arqueológico, da socialização do conhecimento, dentre outros, constituindo estas algumas das linhas de ação/reflexão surgidas e/ou ampliadas no contexto de expansão do mercado. Temos assim, multiplicadas as oportunidades, bem como os desafios.

De nossa parte, além de algumas ações pontuais concretas, vimos defendendo perante a comunidade arqueológica que a superação de muitos dos entraves vivenciados na atualidade somente se dará mediante a elaboração de um planejamento estratégico, que implicará, antes de mais nada, na aproximação, envolvimento e aprimoramento das relações entre os diversos atores que integram a chamada cadeia produtiva da arqueologia: profissionais do mercado, pesquisadores acadêmicos, gestores, instituições de fomento e ensino, museus e uma miríade de novos stockholders que adentram forçosamente a cadeia num contexto mais amplo.

Ciente de nossas limitações para lidar com esse tema, nos propomos por ora traçar um breve diagnóstico a respeito da situação atual, tendo como objetivo contribuir para o debate rumo ao estabelecimento de um marco lógico útil à formulação de uma equação de futuro para a disciplina, para o qual contamos já com algumas proposições lançadas na edição inaugural deste oportuno Arqueologia em Debate, notadamente a contribuição de autoria da colega Loredana Ribeiro.

PARTILHANDO INFORMAÇÕES

No intuito de dimensionar a mencionada performance da Arqueologia contabilizamos as autorizações de pesquisa concedidas pelo Iphan a arqueólogos no período circunscrito entre 2003 (após a promulgação da portaria 230/02) e agosto de 2010 (Vale lembrar que a referida norma constitui a um só tempo espelho e reflexo das transformações recentes vivenciadas pela Arqueologia).

Para o período mencionado obteve-se um total de 4.116 portarias validando uma gama bastante diversificada de projetos, em sua grande maioria, voltada ao atendimento de demandas geradas pelo mercado (licenciamento ambiental), tais como diagnósticos, programas de prospecção e resgate de porte diverso, renovações de permissões, além, obviamente, das pesquisas de cunho eminentemente acadêmico, hoje em número reduzido (menos de 10% do total), sendo a curva de crescimento apresentada no Gráfico 1 a seguir.

Observa-se a partir de 2003 um crescimento médio anual da ordem de 17-20%, notando-se no biênio 2007/2008 um pico de crescimento de 34%. Essa alta está intimamente relacionada ao anúncio e start pelo Governo federal de seu Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), que previa até o final de 2010 a implantação de mais de 1.800 empreendimentos de magnitude diversa, envolvendo investimentos da ordem de US$ 593 bilhões. Muito embora, tenhamos sentido alguns impactos em decorrência da repentina crise econômica mundial (fenômeno ocorrido entre 2008 e 2009), não se observou reflexos negativos na curva de crescimento da Arqueologia.

Em 2010, deveremos ultrapassar a marca recorde de 1.000 portarias/ano, ou seja a emissão de um diploma legal a cada 8 horas! Muito provavelmente, em 2011 venhamos a assistir a um novo boom, sobretudo, se levarmos em conta que apenas 50% das verbas alocadas para o PAC do Governo federal foram efetivamente utilizadas. Por fim, há que se registrar não figurarem no total obtido pareceres e diagnósticos realizados sem a respectiva licença (trabalhos realizados usualmente a partir de fontes secundárias, por ex), o que certamente duplicaria ou mesmo triplicaria o total de produtos gerados para atender ao mercado no período abordado.

A CADEIA PRODUTIVA DA ARQUEOLOGIA: UM PRIMEIRO ESBOÇO

Pesquisadores

A Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB), criada em 1980 conta com 353 afiliados. A sua vez, nossos levantamentos indicam 375 profissionais figurando como coordenadores de projetos licenciados pelo Iphan no período analisado (heads). Esse número se amplia significativamente, se acrescermos à listagem o batalhão de recém formados, atuando em regimes de trabalho os mais diversos (quer de forma temporária ou permanentemente). Computados esses jovens arqueólogos, atingimos facilmente a marca conservadora de 700 profissionais em atividade no país.

Não podemos nos esquecer de computar os pesquisadores de áreas afins, igualmente envolvidos no desenvolvimento de projetos de porte como historiadores, geógrafos, sociólogos, educadores e assim por diante. Do mesmo modo, não podemos nos esquecer dos inúmeros colaboradores engajados no atendimento das demandas colocadas pelo meio empresarial, desenvolvendo tarefas de administração, logística, produção de materiais de apoio à pesquisa,comunicação e extroversão dos resultados.Assim, dentro de uma perspectiva ainda mais conservadora podemos estimar um total de 2.500/3.000 indivíduos envolvidos diretamente na atividade, algo impensável à época da criação da Sociedade Científica na década de 1980, surgida da reunião de 19 arqueólogos doutores.

Gestores e fiscalização

Criado em 1937 para gerir o patrimônio cultural, o Iphan mantinha na década de 1980 em seu quadro de pessoal cerca de 6 profissionais arqueólogos voltados à fiscalização, situação que modificou-se apenas recentemente, em função das demandas colocadas pela arqueologia de mercado. Hoje, o Iphan conta com cerca de 45 profissionais, distribuídos em sua sede e superintendências estaduais. Embora do ponto de vista dos recursos humanos o Governo tenha somado esforços objetivando suprir tal demanda, no que tange aos recursos materiais necessários à gestão e fiscalização os investimentos são ainda insuficientes conforme ressaltam Schaan e Bezerra (2009).

É certo, o Iphan tem estimulado de diversas formas o debate em torno da Arqueologia e preservação do patrimônio arqueológico, incentivando encontros, apoiando e patrocinando congressos e publicações. Porém, tais ações nãoestão inseridas no bojo de um planejamento estratégico compartilhado de longo alcance, constituindo iniciativas ainda atomizadas, quadro que começou a modificar-se apenas bem recentemente (I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural, criação do Centro Nacional de Arqueologia, Grupo de Trabalho de Arqueologia Histórica, por ex). Já no âmbito dos estados e municípios, não observamos reflexos ou grandes avanços salvo raríssimas exceções no que tange à gestão dos recursos arqueológicos, tema a ser enfrentado e que deverá constituir linha de investigação/discussão/ação sob a ótica da cadeia produtiva, de modo a amplificar e sedimentar as boas práticas em escala local. Instituições de ensino, pesquisa e apoio à preservação do patrimônio arqueológico.

Contamos hoje no Brasil com 10 cursos de graduação, 6 cursos voltados à especialização (Latu Sensu), além de 6 cursos universitários devotados à formação Strictu Sensu, (mestrados e doutorados) É importante lembrar que desse total, 11 cursos foram criados nos últimos dois anos! Nesse particular as opiniões convergem a respeito, no que se refere a paridade entre quantidade e qualidade do produto científico: sob a ótica da academia (responsável pela formação de novos quadros de pesquisadores), o óbice se assenta na completa falta de embasamento teóricometodológico de boa parte dos pesquisadores envolvidosno processo. Do ponto de vista da arqueologia empresarial os reclames se dão em relação ao completo despreparo técnico de boa parte dos profissionais que ascendem ao mercado. Tais posições embora convergentes exprimem a clara falta de sintonia e desconexão entre alguns dos atores que integram a cadeia produtiva arqueológica.

A sua vez, os levantamentos realizados apontam a existência de 177 instituições tais como museus universitários, fundações púbicas e privadas, órgãos da administração estadual e municipal, Ongs, apresentando perfis amplamente diferenciados, recebendo os acervos gerados elas pesquisas, muitas das quais sem nenhuma tradição e condições para tal. Essa foi a solução encontrada a título precário pelo mercado diante da carência de locais/instituições para guarda do patrimônio arqueológico gerado, que cresce de forma igualmente exponencial.
Imersos em seus afazeres cotidianos a fim de atender às múltiplas demandas que ora se colocam arqueólogos, gestores e instituições de ensino, pesquisa e salvaguarda não contam em suas agendas, tampouco demonstram aptidão per se para articular-se num projeto coeso destinado à construção de um futuro para a Arqueologia. Ou melhor, estamos despreparados para lidar com o fenômeno para além da “disputa por um lugar ao sol” ante as armadilhas que o crescimento nos coloca.

CONCLUINDO

Precisamos definir objetivos e metas, planos de ação concretos e encadeados, submeter os resultados e processos a permanente avaliação em sintonia com a sociedade, estabelecer padrões de qualidade e procedimentos de pactuação de forma participativa nos quadros de um ambiente democrático, tal qual ocorreu em outros campos do conhecimento e/ou atividades profissionais.

Definitivamente, os encontros bienais promovidos pela SAB, com suas salas cada vez mais abarrotadas, tendo que sobrepor simpósios, comunicações e apresentações em cronogramas enxutos não constituem o espaço fluído para tal. Multiplicam-se os encontros regionais, setoriais e temáticos de cunho científico, não mantendo com a constância necessária, via de regra, o foco direcionado para a discussão de questões de natureza estratégica.

Dentre inúmeros aspectos a serem devidamente aprofundados em relação à cadeia produtiva, conforme mencionado, defendemos além do indispensável aprimoramento da comunicação entre os diversos elos que a conformam, a criação de instrumentos de valoração e validação do conhecimento a ser compartilhado, mediante um processo contínuo de avaliação da cadeia per se, a fim de promover o desenvolvimento científico e a preservação efetiva dos recursos arqueológicos dentro de uma perspectiva ética e responsável em oposição à mercantilização irrefreável. Segundo Castro (2005), a forma como a informação é produzida, flui e é apropriada pelos diversos componentes da cadeia produtiva constitui um fator preponderante no seu desempenho. Este conhecimento torna-se essencial para desenvolver estratégias de gestão de informação na cadeia.

Para desempenhar suas funções com eficácia, necessitase de informação teórica, tecnológica, gerencial e de mercados, de fatores e de produtos gerados interna e externamente à cadeia produtiva. Urge, como defendem Eduardo Neves e Loredana Ribeiro, estabelecer standarts mínimos de qualidade a serem pactuados pelos profissionais, passíveis de serem aplicados às múltiplas situações e escalas de projetos surgidos no bojo do mercado, assuntos que extrapolam aos justos limites estabelecidos pela academia no seu âmbito de atuação.

Outro aspecto no que tange à disseminação da informação como um todo ao longo da cadeia, aponta diretamente para o Iphan, detentor hoje de uma gigantesca massa de dados gerados pela arqueologia de mercado. O órgão tem o dever de compartilhar-los com a sociedade e deveria se apurar na tarefa antes que seja tarde demais Por fim, compartilho com Ribeiro a idéia de criação de uma sociedade profissional. Unamo-nos os interessados em dar-lhe os seus primeiros contornos. Quando: imediatamente.

Paulo Zanettini
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Referências Bibliográficas

Caldarelli, S. 1997 Atas do Simpósio Sobre Política Nacional do Meio Ambiente e Patrimônio Cultural. Repercussões dos Dez Anos da Resolução CONAMA nº001/86 sobre a Pesquisa e Gestão dos Recursos Culturais no Brasil. Universidade Católica de Goiás, Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, Goiânia

Castro, A. M. G. 2002 Estratégia de P&D para melhoramento genético em uma época de turbulência. In: Simpósio de Gestão e Tecnologia, 22., Salvador, nov. 2002. Anais... São Paulo: FEA /USP

Chawick, A. 2003 Post-processualism, professionalization and archaeological methodologies.Towards reflective and radical practice. Archaeological Dialogues, Cambridge University Press. IPHAN (9sr) & Zanettini Arqueologia 2008 Termo de Cooperação Técnica, Relatório 1 , (datilog)

Johnson, B. B. 1992 Projetos para a mudança estratégica em instituições de P&D. In: Simpósio Nacional de Gestão da Inovação Tecnológica, 17., São Paulo, 1992. Anais. São Paulo: FEA \USP

Meneses, U. T. De B. 1988 Arqueologia de Salvamento no Brasil: uma Avaliação Crítica. Texto apresentado no Simpósio S.O.S Preservação, Pontifícia U niversidade Católica, Rio de Janeiro

Schaan, D. & Bezerra, M. 2009 Construindo a Arqueologia no Brasil: a trajetória da sociedade de Arqueologia Brasileira, GK Noronha, Belém.

Sociedade de Arqueologia Brasileira 2003 Anais do Simpósio: A Arqueologia no meio empresarial, Universidade Católica de Goiás, IGPA, Goiânia. Zanettini, P. 2009 Projetar o futuro para a Arqueologia brasileira: desafio de todos, Revista de Arqueologia Americana, 27 pp 71-84.

foto1 Escavações arqueológicas no arraial de Canudos. Contratante SADCT/Bahia
foto 2 Escavações na ruínas da igreja matriz de Vila Bela,
MT. Projeto desenvolvido em nível de voluntariado em interação
com a SEC?MT
foto 3 Escavações no Porto de Vila Bela, MT
foto 4 Atividade dw sivulgação em São Miguel das Missões, RS

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