Caminhos Cruzados? Refletindo sobre os Parâmetros de Qualidade da Prática Arqueológica no Brasil.

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A arqueologia brasileira encontra-se hoje em uma encruzilhada. De um lado, o campo de trabalho ampliou-se pela práticaempresarial e pelas demandas do mercado derivadas do PAC.

 

 

A arqueologia brasileira encontra-se hoje em uma encruzilhada. De um lado, o campo de trabalho ampliou-se pela prática empresarial e pelas demandas do mercado derivadas do PAC.

De um lado, o campo de trabalho ampliou-se pela prática empresarial e pelas demandas do mercado derivadas do PAC. Por outro, o REUNI estimulou a criação de novos cursos de graduação em arqueologia em distintos contextos regionais. No entanto, as reflexões têm ainda sido tímidas quanto às consequ?.ncias deste processo em termos de qualidade da prática arqueológica no Brasil. Em um primeiro momento cabe refletir sobre a relação entre legislação de proteção do patrimônio arqueológico e estruturação do campo científico no país. Se a prática científica em arqueologia no Brasil surge a fim de atender as demandas da lei 3924, promulgada em 1961, as consequências deste processo foram sentidas pelo descompasso entre produção acadêmica e formação profissional. Como ressalta Barreto(1999/2000), o isolamento da arqueologia em relação às demais ciências humanas no país é fruto deste projeto preservacionista. Entendida enquanto prática de caráter empiricista, voltada à preservação do patrimônio, a produção nacional manteve-se afastada das discussões teórico-metodógicas que revolucionavam a arqueologia mundial naquele momento.

Enquanto “um projeto de intelectuais interessados em preservar o patrimônio”, a arqueologia brasileira nasceu orientada por uma noção elitista de patrimônio que manteve intacto o hiato entre o passado e o presente, alienando a prática acadêmica da função social da pesquisa. Este estigma de origem adiou em trinta anos as reflexões na comunidade acadêmica do país sobre o caráter científico e sócio-político de nossa pratica. Somente na década de 1990, Programas de Pósgraduação nacionais passaram a investir na formação qualificada de profissionais em arqueologia, gerando condições para que este processo de liberdade auto-reflexiva, ainda que tardio, começasse a gerar frutos.

Porém, a Resolução CONAMA 001/1986, ao agregar o patrimônio arqueológico à legislação de proteção ambiental, acabou por gerar indiretamente as bases para que um novo conflito emergisse no processo de maturação intelectual da arqueologia nacional, contrapondo os interesses de uma arqueologia de caráter empresarial e de uma arqueologia de caráter acadêmico. O mercado de trabalho que hoje se descortinaao arqueólogo brasileiro é sem precedentes. Se há alguns anos atrás o desenvolvimento de pesquisas arqueológicas no país demandava vinculação acadêmica e dependia de parcosrecursos públicos para sua efetivação, hoje de norte a sul do país, frentes de trabalho financiadas pela iniciativa privada e publica permitem o desenvolvimento de trabalhos de campo em larga escala, gerando uma gigantesca quantidade de dados.

Se neste novo contexto profissional, o IPHAN segue como o responsável por garantir a mediação entre os interesses do empreendedor e o atendimento da legislação patrimonial, o controle de qualidade da arqueologia regida pela lógica do capital é medido pela eficiência das empresas de consultoria em atender o cronograma dos empreendimentos. Pela nova lógica do trabalho que se impõe tempo é dinheiro, quantidade é qualidade e é neste ponto que o conflito aflora: qual o papel da academia no contexto da arqueologia do capital? Oferecer formação técnica devidamente qualificada aos futuros peritos na elaboração de laudos e relatórios que visem atender as demandas da legislação ambiental? Abrigar coleções através de apoio e salvaguarda institucional aos projetos de contrato? Dar legitimidade científica aos projetos empresariais?

De acordo com um levantamento elaborado por Schaan (2009), dez novos cursos de graduação em arqueologia foram criados no país entre 2002 e 2010, em resposta as demandas deste novo mercado de trabalho. Um primeiro esforço de discussão quanto à estrutura curricular destes cursos foi realizado na última Reunião da SAB. Porém o resultado do debate refletiu a atual encruzilhada da arqueologia brasileira: investir na formação técnica do profissional que atuará na arqueologia empresarial ou investir na formação teórico-metodológica do profissional que produzirá conhecimento sobre o passado através do estudo da cultura material. A meu ver estes dois caminhos devem obrigatoriamente se cruzar ao longo da formação de qualquer profissional, contudo, a estrutura do Ensino Superior no país acaba por determinar que esta convergência ocorra efetivamente somente na Pós-graduação. Mais um dilema coloca-se em evidencia neste ponto: em quemedida nossos Programas de Pós-graduação em Arqueologia estão preparados para estabelecer os parâmetros de qualidade da prática arqueológica no Brasil? Por um lado, são ainda poucas as Instituições que oferecem programas de Pós-graduação em Arqueologia no país, sendo todos implementados entre 2002 e 2010 e somente três habilitados a formação em nível de doutorado (Schaan, 2009).

Caso não haja um investimento sistemático da CAPES na ampliação desta estrutura, em médio prazo os Programas atualmente existentes serão incapazes de atender as demandemandas que os novos cursos de graduação vão oferecer. Por outro lado, a estrutura dos cursos de Pós-graduação existentes não conta com quadros suficientes e instalações físicas capazes de suprir as deficiências da formação de graduação. A este fator se agrega a ausência de diretrizes curriculares mínimas que contemplem o aperfeiçoamento das habilidades básicas adquiridas na graduação, principalmente no que diz respeito à formação teórica e crítica destes profissionais quanto a sua área de atuação.

Outro fator que deve ser considerado diz respeito à qualidade dos resultados dos trabalhos derivados das pesquisas de contrato e neste caso a lógica da academia é completamente distinta da lógica do capital. Se a arqueologia empresarial oferece linhas alternativas de financiamento que ampliam as possibilidades de desenvolvimento de pesquisas arqueológicas no país, quantidade, infelizmente, não é sinônimo de qualidade. Mais uma vez, uma proposta legal de caráter preservacionista derivadas da Resolução CONAMA reflete-se no renascimento do empiricismo, na manutenção de uma visão elitista quanto ao patrimônio e na alienação do trabalho empresarial frente às repercussões sócio-políticas da prática arqueológica.

Deve-se considerar que a ausência de reflexão sobre os resultados das pesquisas que caracteriza a maioria dos projetos empresariais é produto de uma lógica distinta da acadêmica: a pesquisa de contrato não é orientada para testar problemas de pesquisa, mas pelas características do empreendimento a qual presta serviço. Na maioria dos casos, o produto de um projeto de contrato visa em campo levantar e resgatar o maior número possível de sítios afetados pelo empreendimento e em laboratório (quando há recursos previstos para isto) produzir relatórios descritivos que justifiquem ao empregador a relevância dos contextos “protegidos”. O destino destas coleções na “forma da lei” deve ser a salvaguarda institucional e a divulgação científica. Porém, em ambos os casos os resultados deste processo podem ser altamente deficitários.

Por um lado, os relatórios gerados raramente são publicados, restringindo-se sua circulação ao âmbito legal, o que dificulta e, por vezes, impossibilita seu acesso à comunidade científica. O mesmo destino de silêncio sofre as coleções derivadas das pesquisas de contrato, depositadas em instituições sem recursos para a curadoria e salvaguarda adequada, aguardando indefinidamente um estudo mais aprofundado e consequente divulgação. Por outro lado, quando os resultados de uma pesquisa de contrato atingem o âmbito acadêmico, salvo raras exceções, na melhor das hipóteses ocorre uma inversão da lógica científica através de projetos de Pós-graduação que buscam agregar a posteriori um problema de pesquisa a um relatório de contrato cujos dados não foram coligidos de forma a atender uma determinada demanda teórica. Em casos mais extremos, a conivência com a baixa qualidade acadêmica manifesta-se na aceitação de relatórios técnicos descritivos como pré-requisitos mínimos para a obtenção de títulos de mestre e doutor. Se a contribuição destes trabalhos de pós-graduação para a produção de conhecimento é mínima, no entanto resulta em capacitação profissional aos seus produtores frente aos empregadores desejados, servindo o título acadêmico na lógica do capital como um divisor de águas entre o “peão de obra”, o coordenador de projeto e o chefe de equipe.

Meio século depois do nascimento da arqueologia “científica” no país, voltamos ao ponto de partida: fazemos arqueologia para quem e para o quê? Devemos estar conscientes de que este é o momento de convergência dos caminhos entre formação e atuação profissional, devendo os profissionais que atuam nas distintas áreas assumir suas responsabilidades no processo e investir sistematicamente na qualificação do campo científico da arqueologia no país. Nossa legislação patrimonial, aliada a um campo de trabalho autônomo e em crescimento devem ser consideradas pelo que são: possibilidades de implementação de parâmetros de qualidade da prática científica. O arqueólogo que atua no campo acadêmico deve ter ciente que seu compromisso ético fundamental vincula-se a formação de qualidade dos futuros profissionais, devendo a Universidade oferecer um suporte sólido para o desenvolvimento da prática arqueológica em qualquer contexto de atuação profissional, pautada na reflexão crítica e cidadã do exercício da arqueologia contemporânea. O arqueólogo que atua no campo empresarial deve considerar que sua responsabilidade ética principal é a defesa do patrimônio e a produção de conhecimento derivado de suas atribuições técnicas.

Atender às necessidades do empreendedor frente às determinações da legislação patrimonial é apenas o primeiro passo. A responsabilidade pelo destino das coleções e a relação entre os métodos empregados na coleta de dados com as problemáticas de pesquisa relacionadas ao contexto arqueológico do empreendimento devem ser a orientação principal de todo projeto empresarial. Os caminhos se cruzam aqui, na expectativa da regulamentação da profissão de arqueólogo no Brasil. Cabe a nós decidir se vamos nos conformar aos antagonismos gerados pela nossa inserção na lógica do capital, seguindo em caminhos separados, ou juntos construirmos uma única via de acesso para uma arqueologia científica efetivamente madura para atuar de forma ética e profissional no século XXI.

Adriana Schmidt Dias
| Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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Referências Bibliográficas

Barreto, Cristiana. 1999/2000 A construção de um passado pré-colonial: uma breve história da arqueologia no Brasil. Revista da USP, 44 (1): 32-51.

Schaan, Denise. 2009 A arqueologia brasileira nos trinta anos da SAB. In: Schaan, Denise P. & Bezerra, Márcia (Org.). Construindo a Arqueologia no Brasil: a Trajetória da Sociedade de Arqueologia Brasileira. Belém, SAB/GK Noronha Ed., 277-295 p.

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