Auto-regulação da arqueologia brasileira: Responsabilização, credibilidade e fortalecimento profissional.

A auto-regulação consiste no estabelecimento de regras e padrões de qualidade para o desenvolvimento dos trabalhos e a definição de meios que garantam seu atendimento.

A auto-regulação consiste no estabelecimento de regras e padrões de qualidade para o desenvolvimento dos trabalhos e a definição de meios que garantam seu atendimento.

Com os estudos obrigatórios para licenciamento ambiental de empreendimentos econômicos e obras públicas a arqueologia brasileira tem se desenvolvido nas últimas duas décadas a um ritmo inédito: os cursos de graduação e pós-graduação, as vagas para professores nas instituições públicas e privadas, e os profissionais em atuação no mercado de trabalho crescem ano a ano. Também inéditos são os impactos que a prática da arqueologia tem sobre o público não especialista: nosso trabalho nunca foi tão acompanhado e observado por pessoas fora das áreas técnico-científicas como hoje.

A legislação brasileira nos atribui a função de identificar, estudar e definir medidas de gestão do patrimônio arqueológico impactado por empreendimentos econômicos. Cada vez mais ouvimos de colegas que a quantidade de pessoas envolvidas com a arqueologia profissional corresponde a um número desconhecido. Também crescente é a preocupação com os relatos de que algumas pessoas estão por aí a assinar laudos, diagnósticos e relatórios diversos sem apresentarem, em seus currículos e nos resultados de seus trabalhos, requisitos mínimos e desejáveis a uma gestão responsável do patrimônio arqueológico. A situação atual é que não sabemos bem quantos somos, que qualificações temos, sequer temos claramente definidos quais são os critérios mínimos para aceitação como profissional. A profissão não é regulamentada; a ‘comunidade’ profissional não existe enquanto tal; a falta de organização interna gera alguns excessos descabidos no cumprimento dos licenciamentos arqueológicos; a arqueologia de contrato não tem, dentro ou fora da disciplina, a credibilidade desejável.

Sabemos que, quando mal conduzida, a prática da arqueologia pode ser prejudicial à base de recursos arqueológicos da Nação, à profissão e às pessoas que, direta ou indiretamente, são afetadas por ela. Imagino que seja então de interesse geral não apenas conter e evitar esses prejuízos, mas garantir sua substituição por benefícios: ao patrimônio arqueológico, à profissão e ao público em geral. Para tanto, a saída parece ser a auto-regulação: o estabelecimento de regras e padrões de qualidade para o desenvolvimento dos trabalhos e a definição de meios que garantam seu atendimento. Assim nos legitimamos como profissionais éticos e responsáveis, ganhamos credibilidade e confiança dentro e fora dos quadros da disciplina e nos fortalecemos como categoria consciente da responsabilidade profissional que a atuação na gestão do patrimônio arqueológico exige.

Em vários países ao redor do mundo a arqueologia de contrato é regulada através de organizações profissionais ou científico-profissionais. Quase sempre a regulação interna surge em resposta ao crescimento das preocupações em relação à ética, ao profissionalismo e à responsabilidade pública daqueles que lidam com o patrimônio arqueológico, preocupações que temos no Brasil já há muitos anos. São quatro os mecanismos mais comuns de regulação da arqueologia profissional nesses países: determinação de critérios mínimos de qualificação para atuação; elaboração de código de ética profissional; elaboração de guias de procedimentos profissionais e aplicação de ações disciplinares.

Os critérios mínimos para atuação profissional na arqueologia variam bastante: no Peru, por exemplo, é necessário diploma universitário, enquanto para obter registro profissional nos Estados Unidos é necessária uma formação e qualificação avançada (pós-graduação, realização de trabalho de envergadura científica, experiência de campo e laboratório com responsabilidade de supervisão). Talvez especialmente interessante para nós seja o exemplo inglês do IFA (Institute for Archaeologists), onde existem cinco níveis de adesão relativos à competência (de estudantes a membros propriamente ditos, que correspondem àquelas pessoas com total autonomia e responsabilidade na condução de projetos de contrato). Muda-se de nível de acordo com os avanços na formação e trajetória profissional. Uma organização da arqueologia profissional brasileira nesse último molde talvez fosse a mais vantajosa, reconhecendo os diferentes patamares de competência profissional pré-existentes e incentivando o constante desenvolvimento e aprimoramento da formação e experiência.

Já o código de ética profissional atua como um manual de qualidade, ele define os pressupostos para obtenção de excelência em padrões éticos e profissionais. Um princípio que pode ser observado em vários códigos internacionais e que seguramente nos seria bastante útil, é o de que aqueles que os seguem não aceitam trabalhos para os quais não disponham de formação e experiência adequada. Quanto mais detalhado e direcionado à atuação profissional for o código de ética, mais elevados podem ser os procedimentos definidos a partir dele.

Os guias de procedimentos podem ser extremamente detalhados e relativos às diversas áreas de atuação na arqueologia de contrato, ou, para começar, podem apenas definir critérios mínimos para um desempenho profissional responsável. Sua importância está no fato de que são eles que estabelecem as normas de atuação para cumprimento dos princípios de qualidade profissional definidos pelo código de ética e é principalmente sobre seu não cumprimento que se dão as ações disciplinares.

São as ações disciplinares, por sua vez, que tornam a auto-regulação da arqueologia eficaz, constituindo-se no mecanismo de aplicação da ética e dos procedimentos profissionais definidos a partir dela. Qualquer contestação de atuação profissional ou denúncia de violação das regras e padrões de conduta estabelecidos são investigadas, podendo resultar em suspensão ou expulsão da pessoa infratora do quadro social da associação.

Ao se associar à organização de auto-regulação, deve-se explicitar tanto a adesão aos códigos e procedimentos quanto a eventual responsabilização pelo não cumprimento das regras. As listas de associados, que correspondem ao reconhecimento de competências profissionais, normalmente são atualizadas e disponibilizadas anualmente pelas organizações.

Com exceção dos guias de procedimentos, os demais itens já existem na estrutura da Sociedade de Arqueologia Brasileira: critérios para reconhecimento como arqueóloga ou arqueólogo, código e comissão de ética. Por que então a SAB não tem agido de modo eficaz na organização da arqueologia de contrato brasileira? Por um lado, porque esses instrumentos precisam ser atualizados e adequados à atual realidade da arqueologia brasileira, predominantemente profissional. Por outro lado, e é esse o lado que pesa mais na balança, porque o raio de ação da SAB afeta apenas seus cerca de 350 sócios, que devem representar uma parcela mínima do contingente de pessoas em atuação na arqueologia de contrato. Ao menos por hora, por mais que se preocupe com questões relativas à formação e atuação profissional, nossa sociedade é científica e, por não se apresentar como uma associação de representação e defesa de interesses profissionais, talvez não atraia a maioria dos arqueólogos, dedicados à atuação profissional. Mas o estabelecimento e a manutenção de padrões éticos e profissionais são de interesse de todos nós, profissionais e/ou cientistas, de modo que precisamos nos mobilizar para estabelecer esses parâmetros. Então ou transformamos a SAB numa sociedade científico-profissional ou criamos uma associação profissional. Qualquer que seja a nossa escolha, ela será vantajosa para nós, individualmente, para a arqueologia como profissão e para o patrimônio arqueológico.

Antes de mais nada, a adesão a padrões éticos e procedimentos profissionais é um produto a mais a ser oferecido aos clientes: o profissional contratado tem sua competência técnica e seus padrões de conduta ética e profissional reconhecidos por pares da profissão. Além de promover e regular normas e padrões de conduta, uma organização profissional pode atuar em defesa de interesses específicos da arqueologia profissional e do patrimônio arqueológico por ela afetado. São exemplos dessa atuação a definição de tabelas de remuneração mínima a cada patamar de atuação; a facilitação da troca de idéias, informações e experiências; a fomentação de treinamentos, cursos de atualização, capacitação e outros dirigidos aos jovens, etc.

Na medida em que aumentarem as adesões aos padrões de prática profissional, aumentará a pressão sobre aqueles e aquelas que ainda não aplicam os padrões de desempenho determinados. Aumentará também a aceitação desses padrões (senão a exigência de seu atendimento) pelas agências públicas e empreendedores, resultando em óbvios benefícios à base de recursos arqueológicos brasileiros. A organização profissional pode também atuar como um instrumento consultivo para órgãos públicos e empreendedores.

A credibilidade, principalmente fora da arqueologia, que podemos alcançar com uma auto-regulação eficaz da prática profissional reforçará a importância e fortalecerá a disciplina, com potencial, inclusive, para nos trazer mais sucesso na regulamentação da profissão pelo Estado. Seja através da criação de uma nova organização, independente da SAB e especificamente destinada a defender os interesses arqueologia profissional, seja através da incorporação dessas demandas pela nossa Sociedade, chegou a hora de discutirmos seriamente quais são os parâmetros ideais de atuação para a arqueologia profissional brasileira e quais podemos estabelecer de imediato. A sugestão é que criemos uma comissão para conduzir as discussões e estabelecer uma comunicação direta com as/os profissionais brasileiros.

Referências Bibliográficas
SAA Bulletin 15(3), 1997 http://www.saa.org/AbouttheSociety/Publications/SAABulletin/tabid/1341/Default.aspx
http://www.archaeologists.net
http://www.e-a-a.org
http://www.rpanet.org
http://www.coarpe.org

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