O repatriamento de bens arqueológicos às sociedades indígenas: Comentários e considerações sobre descolonização e indigenização da arqueologia

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Episódios envolvendo o repatriamento de bens arqueológicos e restos humanos às populações indígenas, além da disputa pela manutenção e re-apropriação de territórios tradicionais, são relatados pelo mundo. Quase sempre ocorre o desencontro de interesses entre povos indígenas, empreendimentos econômicos, instituições museológicas, pesquisadores e a própria Justiça, a mediadora desses conflitos.

Episódios envolvendo o repatriamento de bens arqueológicos e restos humanos às populações indígenas, além da disputa pela manutenção e re-apropriação de territórios tradicionais, são relatados pelo mundo. Quase sempre ocorre o desencontro de interesses entre povos indígenas, empreendimentos econômicos, instituições museológicas, pesquisadores e a própria Justiça, a mediadora desses conflitos.

Paralelamente, arqueólogos, antropólogos, representantes indígenas, políticos, empreendedores, órgãos governamentais e organizações não governamentais debatem em diversos fóruns sobre os usos científicos, políticos, sociais e econômicos das pesquisas e do patrimônio arqueológico na construção do conhecimento sobre o passado. Duas conclusões se originaram destes debates: 1) não são apenas os pesquisadores ou a administração pública que valorizam o conhecimento sobre o passado; 2) as razões para a preservação do patrimônio arqueológico são múltiplas, contextuais e situacionais.

Diferentes formas de conceber a pesquisa e o gerenciamento do patrimônio arqueológico vêm sendo desenvolvidas, especialmente, para as terras indígenas. Cada vez mais a herança colonialista da arqueologia e a hegemonia dos cientistas e legisladores ocidentais estão postas à prova pelos coletivos indígenas, engajados em um movimento de “descolonização” das práticas arqueológicas em seus territórios, com a exigência de uma prática arqueológica cada vez mais colaborativa.

No Brasil, os povos indígenas há muito vêm demonstrando o seu protagonismo e competência, frente aos órgãos públicos e a sociedade não índia, em defender seus direitos e interesses; por exemplo, na consolidação de uma Legislação Indigenista. No entanto, ainda será preciso mais esforço para que eles consigam encontrar soluções definitivas para os seus problemas de saúde, educação, sustentabilidade econômica e ocupação territorial. Neste cenário, a questão do repatriamento de bens arqueológicos ainda não está no auge das suas prioridades, mas não significa que eles desconheçam o problema ou que ignorem os bens culturais do passado existentes em seus territórios. Geralmente, os povos indígenas apreendem o patrimônio arqueológico como parte da sua memória, tradição oral e construção e reafirmação de identidade, integrando passado, presente e futuro.

Infelizmente, a comunidade arqueológica brasileira ainda não dedicou a devida atenção ao problema do patrimônio arqueológico em terras indígenas. Ainda são poucas as iniciativas envolvendo um trabalho efetivamente colaborativo entre arqueólogos e coletivos indígenas. Normalmente, a relação entre arqueólogos e povos indígenas tem ocorrido durante as pesquisas relacionadas: 1) com situações de demarcação, manutenção e reivindicação de territórios tradicionais por parte dos coletivos indígenas; 2) com a realização de empreendimentos que demandam trabalhos de arqueologia preventiva ou de arqueologia pública; 3) com pesquisas arqueológicas e etnoarqueológicas com foco na construção de uma história indígena de longa duração. Esta situação tende a mudar, considerando a expansão dos interesses e empreendimentos econômicos que atingem de forma direta ou indireta os territórios indígenas e cujos habitantes se mobilizam em busca de mais respeito e reconhecimento da sua autodeterminação para gerenciar suas terras e bens culturais.

Diante desta conjuntura a Etnoarqueologia (como uma arqueologia do presente, dedicada à compreensão da relação dos homens com o mundo material e o entendimento das trajetórias históricas e dos processos de continuidade e transformação sócio-cultural das populações indígenas), a Arqueologia Pública (como prática arqueológica que visa a multivocalidade na interpretação e preservação dos bens culturais do passado) e a Arqueologia Preventiva (como prática arqueológica que visa o resgate, pesquisa e preservação de bens arqueológicos em áreas de empreendimentos econômicos) têm um papel fundamental no desenvolvimento de políticas descolonizadas de gerenciamento do patrimônio. Ao mesmo tempo, cabe a todos os arqueólogos – que trabalham em contextos indígenas ou a eles relacionados - estarem bem preparados teórica e metodologicamente para poder atuar com a devida competência nestas situações, pois se trata de uma prática arqueológica diferenciada que não pode ser aprendida exclusivamente nos manuais de arqueologia. Ela pressupõe uma articulação entre as práticas arqueológicas de investigação do registro material e as práticas antropológicas da etnografia e da observação participante. Acima de tudo, ela pressupõe uma interação efetiva com os povos indígenas e a construção de uma relação de confiança mútua que não se estabelece em pouco tempo.

Cada vez mais é preciso investir na construção multicultural e multivocal do conhecimento sobre os vestígios arqueológicos e o passado. Isto pressupõe redefinir os papéis, os direitos e as responsabilidades dos arqueólogos e dos povos indígenas. É preciso haver uma mudança nas relações de poder no que tange o gerenciamento da pesquisa e os bens arqueológicos. Os arqueólogos precisam deixar claros os seus objetivos e posturas científicas e políticas durante a pesquisa, cabendo às populações indígenas exercerem sua autonomia na (re)significação dos trabalhos arqueológicos para a suas vidas e reivindicar, independentemente dos pesquisadores, sua audiência nas tomadas de decisão sobre suas terras e o patrimônio cultural nelas existente.

A meu ver este é o caminho para uma verdadeira descolonização e indigenização da arqueologia. Entendo que as agendas científicas ocidentais são tão relevantes quanto as demandas sociais, políticas e econômicas dos indígenas e que a noção de pesquisa engajada e de relevância social implica em diferentes conotações e pontos de vista – como arqueóloga seria uma hipocrisia pensar de outra forma. É importante considerarmos que as práticas arqueológicas auto-reflexivas e multivocais não conduzem automaticamente ao consenso entre os sujeitos com interesses distintos, mas pode abrir à possibilidade de diálogo e expressão das diferenças.

Os arqueólogos brasileiros, por estarem lidando com a repatriação depois de outros países, têm a vantagem de poder aprender com a experiência internacional sobre a pesquisa e o gerenciamento do patrimônio arqueológico em terras indígenas. Não será necessário cometer os mesmos erros de outras situações, incorporando elementos e estratégias - de cada caso - considerados bem sucedidos por todos os envolvidos. Fazendo isso, o problema da pesquisa em terras indígenas e o repatriamento de bens arqueológicos às populações indígenas poderá ser conduzido mais democraticamente por todos os interessados, com espaço para que aconteçam iniciativas mais criativas e inclusivas, como a construção de centros culturais e museus indígenas. Ao mesmo tempo, os arqueólogos podem contribuir teórica e metodologicamente com suas experiências no debate internacional sobre o patrimônio arqueológico como bem multicultural.

Fabíola Andréa Silva
| Docente e Pesquisadora do Museu de Arqueologia e Etnologia/USP. Bolsista de Produtividade do CNPq.
Coordenadora do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Tecnologia e Território. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia/MAE-USP.
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